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O que estamos fazendo atualmente na Cirurgia Fetal – Revista CIPERJ

“O que estamos fazendo atualmente na Cirurgia Fetal” é o terceiro artigo escrito pela nossa equipe e publicado na revista CIPERJ, da Associação de Cirurgia Pediátrica do Estado do Rio de Janeiro. 

Ele destaca os principais procedimentos intrauterinos realizados atualmente no Brasil, possibilitando a correção de malformações fetais ainda durante o desenvolvimento do feto. 

Nos posts anteriores, aqui no Blog, a nossa equipe abordou dois temas igualmente importantes para ilustrar o panorama atual da Cirurgia Fetal no Brasil: “Anestesia para Cirurgia Fetal” e “Ética em Cirurgia Fetal”.

 

O que estamos fazendo atualmente na Cirurgia Fetal?

A Cirurgia Fetal surgiu de uma longa história de estudos clínicos e experimentais em diagnóstico pré-natal e fisiologia fetal e neonatal, conduzidos de forma multidisciplinar.  É um dos mais novos campos de atuação da Medicina. Envolve alta tecnologia e está em constante aprimoramento técnico.

O cirurgião pediatra professor Michael Harrison, co-fundador do Centro de Tratamento Fetal da Universidade da Califórnia, em São Francisco (UCSF), nos Estados Unidos, é considerado o pai da Cirurgia Fetal moderna.  

Suas contribuições, desde a década de 80, foram decisivas na implementação desta nova área de atuação médica. Ele definiu as bases técnicas, por meio de inúmeros estudos experimentais animais, e também os primeiros alicerces éticos de sua prática.

No nosso meio, prevaleceu inicialmente a escola europeia, com atuação majoritária de obstetras. A contribuição de cirurgiões pediatras teve início mais recentemente, quando alguns deles se incorporaram a equipes de obstetras, ou compuseram novas equipes de caráter multidisciplinar.

A Cirurgia Fetal brasileira, por influência dos obstetras especialistas em Medicina Fetal, tem destaque na correção intrauterina da Mielomeningocele fetal e ampla expertise em técnicas minimamente invasivas. Tanto por via fetoscópica, quanto endoscópica. Todos os procedimentos propostos internacionalmente nesta área estão disponíveis em nosso meio.  

Conheça os principais procedimentos em Cirurgia Fetal realizados no Brasil:

Correção intrauterina de Mielomeningocele (MMC)

A Mielomeningocele resulta do não fechamento da porção caudal do tubo neural.    Esta extremidade da medula fica exposta ao ambiente amniótico com comprometimento progressivo da inervação distal.  

Além disso, ocorre herniação parcial do cerebelo pelo forame magno e consequente hidrocefalia (síndrome de Arnold Chiaria tipo II).  

O diagnóstico é feito geralmente durante ecografia morfológica, entre 18 e 22 semanas, pela visualização direta do defeito e, indiretamente, por alterações na cabeça do feto.  

Estes sinais, mais fáceis de serem visualizados do que a própria MMC, são:  a alteração do formato do perímetro cefálico (cabeça “em limão”), deslocamento póstero-inferior do cerebelo, que adquire formato de banana e dilatação dos ventrículos laterais. 

Se não houver contra indicações maternas ou fetais para a realização da Cirurgia, ela deve acontecer idealmente até a 26ª semana de gestação. Classicamente, é feita por via aberta (Cirurgia Fetal a Céu Aberto). 

Uma contribuição brasileira digna de nota é a correção da MMC fetal por mini-histerotomia, que prevê uma incisão bem menor. Possibilitando, assim, o reparo do defeito de forma segura, e com menor risco de prematuridade ou complicações materno-fetais. 

Tratamento da Síndrome da transfusão feto-fetal

Gestações gemelares monocoriônicas (quando gêmeos idênticos compartilham a mesma placenta) têm uma maior incidência de desfecho adverso. A Síndrome da transfusão feto-fetal é um dos fatores que colaboram para essa característica.

Em  função da angioarquitetura da  placenta compartilhada, há passagem de sangue  entre um feto (doador) e o outro (receptor). No ultrassom, é possível identificar diferenças em relação à quantidade de líquido amniótico entre as bolsas. 

O feto doador pode ter a bexiga vazia. Podem ocorrer alterações hemodinâmicas e cardíacas, ou até óbito fetal. Com a gravidade da doença, um dos fetos pode evoluir rapidamente para o óbito.

O tratamento intrauterino consiste na ablação das anastomoses vasculares na superfície placentária que causam a transfusão, seguida de cauterização do equador vascular placentário. 

Este procedimento é realizado por fetoscopia, com o emprego de fibra ótica e fonte de laser, visualização direta dos vasos e cauterização dos mesmos. Pode ser realizado com anestesia local materna.

Cirurgia Fetal para tratamento da Hérnia Diafragmática Congênita (HDC)

A HDC é uma doença bem conhecida pelos cirurgiões pediatras e neonatologistas, com incidência variável entre 1 a cada 2500 a 4000 nascidos vivos. 

A falha do fechamento completo do diafragma na fase embrionária, antes da redução da herniação fisiológica do intestino médio, é a base fisiopatológica. 

O hemitórax passa a ser ocupado por vísceras abdominais, resultando em hipoplasia e hipertensão pulmonar. 

Caso graves de HDC, com prognóstico reservado definido no pré-natal (de acordo com relação pulmão-cabeça corrigida pela idade gestacional e posição do lobo hepático esquerdo) podem se beneficiar da intervenção intrauterina. 

Nestes fetos, na ausência de contraindicações, como a ocorrência de outras malformações associadas, faz-se a oclusão traqueal fetal, pela inserção de um balão por fetoscopia/ laringoscopia fetal.

O procedimento é realizado com o emprego de um microcateter e posterior insuflação. O balão é então destacado do microcateter e permanece ocluindo a luz traqueal. Assim, é possível induzir o desenvolvimento dos pulmões, aumentando a chance de sobrevida neonatal.

Pesquisas de tratamentos pré-natais mais eficazes e menos invasivos estão em curso. Como, por exemplo, a administração pré-natal transplacentária de sildenafil, associada ou não à oclusão traqueal.

Tratamento da anemia fetal 

A anemia fetal pode ter etiologia imunológica, geralmente por incompatibilidade sanguínea, sendo mais comum a incompatibilidade Rh-D. 

A sua incidência caiu drasticamente em função da profilaxia com anticorpo anti-D administrado em gestantes Rh negativas. 

Casos relacionados a outros antígenos da superfície da hemácia, que eram clinicamente menos relevantes e, no caso do Brasil, ainda a aloimunização anti-Rhesus D, mantêm a anemia fetal relevante. 

Outra etiologia possível da anemia fetal é a infecciosa, como a infecção por parvo vírus. A anemia, quando grave, induz a hepatoesplenomegalia e hidropsia fetais. 

O sangue fetal anêmico tem uma velocidade aumentada, podendo ser identificada na artéria cerebral média, pelo Doppler ecográfico.  

Quando indicada, realiza-se transfusão sanguínea fetal de concentrado de hemácias irradiadas, por punção percutânea, guiada por ecografia da veia umbilical. 

Sempre que possível tecnicamente, preferimos a punção da veia umbilical ao nível da inserção do cordão na placenta.

Cirurgia Fetal para tratamento das bandas ou bridas amnióticas

A banda amniótica é uma entidade não completamente compreendida do ponto de vista etiológico, estando relacionados diferentes fatores intrínsecos e extrínsecos. 

Tem uma incidência estimada de 1 caso para cada 11.200 nascimentos. Entretanto, a incidência ultrassonográfica pré-natal pode ser maior, com aumento importante quando são incluídos natimortos.

Do ponto de vista fisiopatológico, são aderências (bridas) dentro do saco amniótico que podem provocar o aprisionamento e constrição de partes do corpo fetal, comprometendo a perfusão sanguínea. 

Clinicamente pode se apresentar com um amplo e heterogêneo espectro de deformidades e evoluir para amputação destas partes, geralmente extremidades.

O diagnóstico é feito pela visualização ultrassonográfica de membro fetal com mobilidade limitada e alterações do fluxo sanguíneo ao Doppler, podendo já haver importantes alterações anatômicas.

O procedimento indicado é a cirurgia fetoscópica para Lise de brida amniótica e liberação das extremidades acometidas.

Tratamento de lesões pulmonares fetais

O diagnóstico ultrassonográfico de lesões pulmonares fetais ocorre em uma a cada 10.000 a 35.000 gestações. 

Este complexo e heterogêneo grupo inclui malformação adenomatóide cística congênita (MACC), sequestro pulmonar, cisto broncogênico, enfisema lombar congênita, estenose brônquica segmentar, atresia brônquica, agenesia pulmonar unilateral, tumores mediastinais e obstrução de via aérea superior. 

A MACC é uma alteração hamartomatosa congênita caracterizada por múltiplos cistos, de diversos tamanhos, no pulmão do feto. Pode ser macrocística, microcística ou mista. 

Classicamente se diferencia do sequestro pulmonar por não apresentar suprimento arterial sistêmico, embora existam lesões que são císticas. Porém, com este suprimento, sendo consideradas lesões mistas.

Seu diagnóstico pode ser realizado durante a ecografia morfológica do segundo trimestre. Pela visualização direta de imagens císticas de tamanhos variáveis, únicas ou múltiplas (mais frequentes), presentes no pulmão do feto.

A relação entre o volume da massa e o perímetro encefálico é um excelente preditor prognóstico, útil na seleção de casos candidatos à intervenção pré-natal. 

Quando há sinais de repercussão fetal pelo volume da MACC, observa-se importante desvio de mediastino, polidrâmnio e sinais de hidropsia fetal. Nestas situações, há indicação de tratamento.

Nas formas macrocísticas, pode ser realizada a drenagem do cisto maior para a cavidade amniótica. Este procedimento é realizado mais comumente por controle ultrassonográfico, com a introdução de um cateter de Harrison (tipo double pig tail). Uma extremidade no interior do cisto pulmonar dominante, e a outra, na cavidade amniótica. 

Nas formas microcísticas, quando há repercussão fetal, é feita terapêutica com corticóide materno. O sequestro pulmonar pode apresentar remissão espontânea inclusive intrauterina. 

Entretanto, quando as lesões pulmonares apresentam suprimento vascular evidente, e têm repercussão fetal com indicação de intervenção, a cauterização destes vasos pode ser uma medida terapêutica útil.

EXIT (EX-utero Intrapartum Treatment)

Não se trata de uma terapêutica específica, mas um procedimento realizado quando se necessita fazer uma intervenção no feto durante o nascimento, sob suporte placentário.

A indicação clássica é a obstrução da via aérea superior incompatível com a vida, cuja correção pós-natal demandará um tempo incompatível com a sobrevivência da criança, sem sequelas secundárias. 

Incluem-se nesse grupo volumosos tumores cervicais (teratoma, higroma cístico) e o epignatus. Sua indicação tem sido ampliada na instalação de ECMO, diversas ressecções, e até algumas cirurgias para separação em gemelaridade imperfeitas.

Tratamento da obstrução do trato urinário inferior

A uropatia obstrutiva fetal foi  a primeira anomalia anatômica tratada com Cirurgia Fetal, empregando-se a técnica de derivação vésicoamniótica, por introdução percutânea de cateter. 

A obstrução do trato urinário inferior, mais conhecida pelo acrônimo em inglês LUTO (Lower Urinary Tract Obstruction), ocorre em até 1% de todos os fetos, causada por   bloqueios de graus de obstrução variáveis do trato urinário inferior. A morbidade associada é dependente do grau e duração da obstrução.

Além do acometimento de função renal, o futuro neonato pode apresentar hipoplasia pulmonar importante face à condição de oligodrâmnia prolongada. 

Nos fetos femininos, o LUTO está mais frequentemente relacionado a anomalias cloacais e, portanto, não é passível de intervenção.   

Nos fetos masculinos, a causa mais comum de LUTO é a válvula de uretra posterior, resultando em distensão da bexiga nas semanas gestacionais 8 a 10, com subsequentes pelviectasias renais. Também aumento da ecogenicidade do córtex renal, observadas no ultrassom fetal, entre 18 e 20 semanas.

O grande desafio é descobrir o momento da intervenção. O oligodrâmnio é considerado fator pré-requisito para a intervenção fetal. 

Por outro lado, quando presente, muitos fetos apresentam evidências de displasia e insuficiência renal. Critérios preditivos foram descritos e devem ser estudados antes da intervenção.

A intervenção é realizada pela inserção percutânea do cateter de derivação vésicoamniótica, tipo Harrison, que é feito sob controle ultrassonográfico e com anestesia local. 

Já a cistoscopia fetal para ablação da válvula, utilizando fulguração à laser, apresenta bons resultados para um número restrito de pesquisadores. 

Nossa indicação, em princípio, é de derivação vésicoamniótica, ficando a cistoscopia fetal para casos selecionados.

Conclusões sobre o presente da Cirurgia Fetal no Brasil

A Cirurgia Fetal praticada em nosso meio compreende todos os procedimentos realizados nos melhores centros americanos e europeus. 

O recente aumento do interesse por parte dos cirurgiões pediatras em agregar sua expertise às equipes deve contribuir sobremaneira à qualidade dos resultados dos procedimentos materno-fetais no Brasil.

Para ler os artigos completos sobre Cirurgia Fetal e conhecer mais detalhadamente o funcionamento de cada tratamento, é só fazer o download da revista. Ele está disponível no site da Associação de Cirurgia Pediátrica do Estado do Rio de Janeiro (CIPERJ).