Três artigos importantes para compreensão do panorama atual da Cirurgia Fetal, escritos pela nossa equipe, constam na edição de novembro da revista da CIPERJ, Associação de Cirurgia Pediátrica do Estado do Rio de Janeiro. São eles “Anestesia para Cirurgia Fetal”, “Ética em Cirurgia Fetal” e “O que estamos fazendo atualmente na Cirurgia Fetal”.
No post anterior, publicamos um resumo do artigo que abordou os objetivos globais a serem alcançados para anestesia aplicada à Cirurgia Fetal. Foram abordadas as principais técnicas anestésicas utilizadas durante os procedimentos.
Este novo texto traz um resumo sobre a abordagem do artigo “Ética em Cirurgia Fetal”. Nele, foram demonstrados os desafios e as particularidades que giram em torno dos princípios para o tratamento materno-fetal.
Assinam os médicos André Ivan Bradley dos Santos Dias, Camila Girardi Fachin, Dinamene de Oliveira Nogueira, Daniel Bruns, Rafael Frederico Bruns.
Ética em Cirurgia Fetal
A Ética em Cirurgia Fetal deve levar em conta importantes particularidades: a abordagem de dois pacientes no binômio materno-fetal, a necessidade de equipe verdadeiramente multidisciplinar e uma visão compassiva e integral no cuidado desta família. Também considerar que ela está extremamente fragilizada pela descoberta de um feto gravemente doente.
O objetivo é atingir um equilíbrio entre o benefício para o feto e o risco de morbidade para a gestante. Pelo princípio da não-maleficência, apenas procedimentos que tragam benefícios importantes para a saúde do futuro neonato justificam o risco à saúde materna.
A mãe deve ser informada sobre todos os riscos e benefícios. Todas as possibilidades, inclusive a do não tratamento, devem ser expostas igualmente.
Os princípios da Ética Médica e sua aplicação na Cirurgia Fetal
Na prática médica geral, a Ética Médica (EM) pode ser analisada sob três aspectos: a relação médico-paciente, o relacionamento dos médicos entre si, e deles com a sociedade. O seu estudo atenta-se aos princípios de não prejudicar (não-maleficiência) à equidade, à autonomia do paciente, ao sigilo e ao respeito à vida .
A Cirurgia Fetal é um dos mais recentes campos da prática médico-cirúrgica e suscita peculiaridades éticas que diariamente nos desafiam. Características como a multidisciplinaridade e o tratamento de dois pacientes simultâneos, no binômio mãe-feto. E a necessidade de invasão, através da mãe (hígida), para se tratar o feto (doente), demandam uma visão ética também peculiar. A seguir, detalhamos cada um desses aspectos:
A equipe multidisciplinar e o relacionamento entre os seus componentes:
Abordar uma família fragilizada pelo surgimento inesperado de uma intercorrência na gestação demanda da equipe uma postura diferenciada. Portanto, o primeiro grande desafio é a formação de uma equipe multidisciplinar. Ela deve ser composta, por exemplo, por pediatras, neonatologistas, neurocirurgiões, cardíacos, anestesiologistas, fisioterapeutas, enfermeiros e todas as especialidades que necessitam ser agregadas.
O fio condutor do proceder de todos esses profissionais é a alta carga de tecnologia exigida nesses procedimentos, sempre aliada à capacidade de dialogar com a família. Priorizando a escuta atenciosa de seus sentimentos e demandas, enquanto se desenha um plano de intervenção para o feto.
A gestante faz acompanhamento com um obstetra e, quando o feto apresenta algum problema, geralmente é o primeiro médico a opinar sobre a questão, usualmente já baseado em uma avaliação do colega que realizou o exame ultrassonográfico. Portanto, a expertise de todos e de cada um é de fundamental importância para otimização dos resultados.
O novo texto do Código de Ética Médica, em vigor a partir de 30 de abril de 2019, não trouxe avanços referentes à relação entre médicos (Capítulo VII) que atendam a demanda da Cirurgia Fetal. As considerações éticas e sociais da cirurgia materno-fetal têm pesos distintos quando analisados pelas visões dos diferentes membros da equipe multiprofissional.
Embora haja diferenças pelo próprio caminho de formação de cada especialidade, a forma ideal de trabalho será desenvolvida pelo embate dialógico dos diversos aspectos de cada caso. Isto, aliado à prática de valores morais como sensibilidade, compromisso, humanidade e outros tantos.
A ocorrência de dois pacientes simultâneos no binômio mãe-feto
O conceito básico da bioética, atribuído a Hipócrates (Primum non nocere ), também conhecido como princípio da não-maleficência, nos remetendo ao conceito de que o médico deve “primeiro, não prejudicar”.
A gestante é um indivíduo vulnerável, principalmente quando tem notícia que uma condição fetal grave foi diagnosticada. Qualquer terapia fetal invasiva só deve ser indicada se houver uma boa chance de, através dela, salvar a vida do feto, evitar uma lesão irreversível ou atenuar sequelas graves. Riscos à saúde da gestante não devem ser aceitos além dos mínimos inevitáveis.
Toda a terapia fetal só pode ser realizada com consentimento voluntário e total da gestante. Se houver dúvida neste sentido, consultas devem ser realizadas sem a presença de outros familiares, para que fique clara a verdadeira expressão autônoma do desejo materno.
Inovação e Pesquisa em Cirurgia Fetal
Sempre que existirem modelos adequados os procedimentos materno-fetais devem ser estudados inicialmente em animais, após a adequada aprovação dos comitês de ética em pesquisa com animais (CEUA).
Inovação e pesquisa clínica são ambas formas de experimentação. Experimentação pode ser definida quando é feita uma intervenção clínica na qual não há como prever com confiabilidade o desfecho final a partir de dados anteriores.
Enquanto inovação clínica é definida como uma experimentação feita em um paciente específico, para o benefício daquele único indivíduo, e pesquisa clínica é a experimentação em um grupo de sujeitos humanos (que também são pacientes). Esta última, com a intenção de produzir conhecimento que possa beneficiar outros pacientes futuros.
Inovação clínica não produz conhecimento que possa ser generalizado, porque o sucesso clínico, em um único caso, ou em poucos casos, gera dados insuficientes para que possa ser testada uma hipótese usando metodologia científica.
Neste tipo de situação, de forma absolutamente esporádica, quando uma terapia fetal não tem seu benefício cientificamente comprovado, a falta de evidência científica deve ser claramente explicada à gestante.
O princípio da Equidade na prática da Cirurgia Fetal
Equidade consiste na adaptação da regra existente à situação concreta, observando-se os critérios de justiça. Privilegia a obediência aos princípios de ordem ética e moral , em vez de formalismo jurídico.
No exercício da Cirurgia Fetal o princípio da Equidade deve estar sempre presente. O feto, em nossa estrutura jurídica, e em muitos outros países, como o Canadá, não é reconhecido como sujeito de direito.
No artigo 2 do Código Civil brasileiro tem-se que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro. Se nascer com vida, e somente após nascer com vida, ele exerce os direitos que eventualmente surgiram durante a concepção.
Geralmente é necessário enfrentar demandas jurídicas para que a intervenção fetal ocorra o que contribui para desgastar ainda mais os envolvidos.
Formalmente não há cobertura no Sistema Único de Saúde para as intervenções fetais, que também não fazem parte do rol de procedimentos de cobertura obrigatória das empresas operadoras de planos de saúde. Estes são fatores que naturalmente demandam um olhar mais compassivo e acolhedor a estes indivíduos em situação de desigualdade.
A instituição que disponibiliza a CF deve contar com recursos técnicos e humanos para que estas obrigações éticas se encontrem de forma harmoniosa.
São imprescindíveis neste contexto:
- Uma rígida política de diretrizes de consentimento informado;
- Equipe multidisciplinar com reuniões regulares para discussão de todos os casos;
- Serviço de suporte para as gestantes e familiares: aconselhamento genético, psicologia, assistência social, equipe de cuidados paliativos, etc;
- Comitê de supervisão de inovações: para análise crítica de procedimentos cujos resultados ainda não estejam cientificamente definidos;
- Abstenção de autopromoção antes da validação dos resultados: inovação e pesquisa clínica em CF são geralmente percebidos como “medicina de ponta”. Pode ser tentador para instituições e médicos a promoção e propaganda de suas capacidades para pacientes, familiares, médicos referenciadores e a própria comunidade (isto para não mencionar que pode ser muito rentável);
- Manutenção de comitê de pesquisa atuante com forte comprometimento com pesquisa, o que inclui a manutenção robusta de dados evolutivos dos pacientes.
Cirurgia Fetal no Brasil
Os principais procedimentos realizados atualmente no país são abordados no artigo “O que estamos fazendo atualmente na Cirurgia Fetal”, tema do próximo post do nosso Blog.
A revista CIPERJ é a única única publicação científica nacional na área pediátrica. A versão em PDF, com os artigos completos, está disponível para download no site da Associação.